7 Pecados Capitais - Ira

A Ira de Michele

Só existem duas coisas que me tiram do sério: injustiça e traição. Quando me deparo com estas situações sinto brotar de dentro de mim uma ira incontrolável. Todavia, salvo estas circunstâncias, eu sou da paz.

Eu sou a Michele, uma garota tímida, reservada, que adora ler e jogar tarô por hobby. Esta característica do meu temperamento faz com que as pessoas tenham de mim uma imagem distorcida. Não é porque eu sou introspectiva e um tanto esotérica que eu sou besta. Contudo, já estou acostumada com este tipo de erro de julgamento que as  pessoas fazem, se você não é esfuziante, logo é uma pamonha. Com toda certeza estas pessoas ignoram um antigo provérbio que diz que águas paradas são profundas.

De quem não me conhece eu ignoro o que pensam sobre mim, mas não admito que pessoas que convivem comigo, que sabem da minha luta, me subestimem e foi isso que fez a Malu, a minha ex-melhor amiga. Lamentavelmente, para nós duas, ela conheceu a minha ira.

Eu e Malu nos conhecemos no colégio. Eu tinha acabado de mudar de escola, não conhecia ninguém e o primeiro dia de aula me deixou insone, não preguei o olho a noite toda de tanta ansiedade. Na manhã seguinte, uma vez que não tinha alternativa, me enchi de coragem, peguei minha mochila e sai de casa rumo à escola.

No momento em que atravessei o portão, entrei em pânico, a escola era muito maior que eu imaginara, enxerguei várias rodinhas de alunos, todos eles entrosados, brincando uns com os outros, coisas de adolescentes. Já estava pensando em dar meia volta quando uma menina muito bonita, loirinha, de olhos verdes puxou conversa comigo. Olhei para ela e me senti agradecida por não precisar atravessar o pátio sozinha. No momento em que formamos a fila para entrar em sala, descobrimos que estávamos na mesma turma, 6ª F. Nunca mais nos desgrudamos.

Viramos melhores amigas para sempre. Concluímos todas as etapas da escola, sempre juntas. Passamos na mesma faculdade, para o mesmo curso e caímos na mesma sala. Fizemos arquitetura e,  logo após a formatura, decidimos abrir um escritório juntas.

Entretanto, as coisas não foram mais como  eram nos tempos de escola e alguns atritos surgiram. Eu sou metódica e organizada, priorizo a execução do trabalho e levo tudo muito à sério. Malu é desorganizada, começa várias tarefas e não termina nenhuma, prioriza a vida particular e não tem muito compromisso com horários. No entanto, tem uma enorme facilidade para falar com as pessoas e gerar novos contatos. Com o tempo desenvolvemos um modelo de trabalho onde cada uma exercia o que tinha de melhor. Malu, fazia a importante parte comercial. Eu, fazia o escritório funcionar e, juntas, criávamos os projetos. Deu certo.

Um dia, Malu chegou com uma notícia que, com toda a certeza, mudaria de patamar a nossa pequena empresa: haveria uma concorrência para escolher o escritório de arquitetura que iria projetar o mais novo centro comercial da nossa cidade, coisa grande. Juntas, decidimos encarar o desafio.

Surpreendentemente Malu se dedicou muito ao projeto, trabalhando até tarde todas as noites. Quando ela ia para casa, eu continuava no escritório revisando o que tínhamos feito e acrescentando outras ideias que discutiríamos no dia seguinte.

No dia da entrega da proposta, Malu foi sozinha. Afinal, ela dominava os detalhes do projeto e eu pouco poderia acrescentar, além do que era preciso que alguém ficasse para cuidar dos outros clientes. Esse foi o argumento que ela usou para me convencer a ficar. Ela é muito boa de argumentos.

O que eu não sabia é que ela era boa no setor de trapaças também. Quando saiu o resultado da concorrência não me surpreendi ao saber que um renomado escritório havia vencido. O que me surpreendeu foi saber que Malu agora fazia parte deste escritório e que havia usado o projeto que criamos juntas para efetivar sua contratação. Na verdade, o nosso escritório nunca participou da concorrência.

Quando a minha ficha caiu, não consigo descrever agora o que senti. Primeiro o meu sangue ferveu, depois congelou nas veias e o único pensamento que eu tinha era de vingança. Eu queria destruir a Malu, se tivesse coragem talvez a tivesse matado. Tamanha a ira que senti.

Com uma frieza que eu não sabia que tinha, comecei a gravar um vídeo com o meu celular. Ali expus não apenas a traição que havia sofrido como também os segredos que Malu tinha me contado em confidência. Falei de todas as vezes que ela traiu o namorado, de como manipulava os pais, dos subornos que fez para recuperar a carteira de habilitação, que havia  perdido por dirigir embriagada. Fiz com que ela parece sórdida, vulgar e mesquinha. Sem hesitar, coloquei o vídeo nas redes sociais.

Não preciso dizer que ela foi dispensada antes mesmo de ser contratada, que seus amigos sumiram, seu namorado lhe deu um fora e sua vida virou um deserto. Minha vida também não ficou fácil, fui julgada e condenada por um tribunal virtual que não tolera X-9, fui tachada de invejosa e mau-caráter. Minha ira saciou o meu desejo de vingança, mas me trouxe consequências.

Hoje, mais madura, com certeza agiria de forma diferente, talvez até lhe desse uns tabefes, mas conversaria primeiro para entender as suas motivações e expor o meu desapontamento. Nunca mais nos falamos, mas sempre que me sinto angustiada acendo uma vela para o anjo da guarda de Malu e peço que ele olhe por ela.