Mulher saboreando uma taça de vinho

A Volta Por Cima

Sentada à mesa Cláudia observa o peru assado e ainda intacto na travessa. Tanto trabalho pra nada, pensa com tristeza. Olha para o seu celular e constata que já passa das três horas da manhã o que significa que há mais de duas horas ela está imóvel, entre prato sujos e travessas de farofa, arroz e pernil. Seu único movimento é encher mecanicamente a taça de vinho e beber seu conteúdo com o olhar vazio.

— Cacete, duas garrafas! – exclama com voz pastosa se dando conta do quanto já havia bebido.  — Que se foda!  – ela complementa.

O marido ronca no sofá, com a boca aberta e as mãos cruzadas sobre a barriga proeminente.

— Feliz Natal, idiota! –  ela murmura erguendo a taça em direção ao marido, num brinde imaginário ao dia que havia começado cheio de expectativas e terminado de forma tão melancólica.

Como sempre fazia na véspera do Natal, Cláudia havia acordado cedo para dar início aos preparativos da ceia.  Naquele ano, seria somente a sua família: ela, o marido, sua filha Larissa com o noivo e  seu filho Rodrigo, sem a namorada, que estava em Belo Horizonte com a família. O que poderia ter sido uma comemoração intimista se tornou algo terrivelmente chato.

Seus filhos estavam visivelmente contrariados, seu marido, entediado. O pobre genro tentava salvar a noite falando sem parar. Cláudia não queria admitir, mas era fato que a sua insistência em transformar a data num harmonioso evento familiar já não estava mais dando certo. Ano após ano ficava evidente que a formalidade aborrecia a maioria. Mal passou da meia noite e o desconforto dos seus filhos tornou-se mais evidente.

Primeiro foi Larissa que, tocando a mão do seu noivo, começou a ser levantar justificando que a família do rapaz estava à espera deles para comerem as rabanadas, uma tradição que cultivavam desde que ele era pequeno.  Rodrigo aproveitou a deixa e disse que iria se deitar pois, no outro dia seu voo para Belo Horizonte sairia muito cedo, ele tinha prometido à namorada chegar à tempo do almoço de família. Quando se deu conta Cláudia estava às sós com o marido, que repetia a sobremesa com o olhar cabisbaixo. Incrédula ela tentou manifestar sua indignação, mas ele se levantou e murmurou alguma coisa sobre se deitar no sofá. Então era assim? Trinta anos dedicados à família e tudo se resume a cada um por si. — pensou ela revoltada.

Cláudia vira a taça sobre os lábios e espera pacientemente as últimas gotas caírem. Tem vontade de abrir mais uma garrafa, mas desiste. Já está bem alterada. Ela se recosta na cadeira com os olhos semicerrados e o filme de sua vida passa diante dos seus olhos. A infância pobre, as dificuldades para estudar, seu ingresso na faculdade, o primeiro trabalho como formada, o seu casamento…

Cláudia casou-se apaixonada por Raul e tudo foi bem até a gravidez. Assim que Larissa nasceu, seu marido começou uma campanha para que ela largasse o emprego para só cuidar da filha e da casa. No começou bem que ela se impôs, mas a cada resfriado da menina ele dava um jeito de deixar bem claro que se a criança ficasse em casa não adoeceria tanto.  Um golpe baixo, que atingia em cheio a culpa que sentia. E assim ela se demitiu, jurando para si mesma que retornaria quando a filha completasse três anos.

Quando Larissa completou dois anos ela se viu grávida novamente e foi aí que seus planos foram definitivamente por água abaixo.  O tempo voou e  seus sonhos foram engolidos pelas prioridades dos outros. Num rasgo de lucidez Cláudia se deu conta da besteira que tinha feito na vida. Nunca poderia ter cedido às pressões do marido, jamais poderia ter se anulado para viver a vida dos filhos. Os seus sonhos não eram menores que os deles e nem de ninguém.

Sente-se ridiculamente patética ao se dar conta de que se contenta com as migalhas de afeto que às vezes lhe jogam.  A verdade é que seus filhos são dois egoístas mimados e seu marido um machista enrustido. Isso tem que mudar, eu preciso dar a volta por cima. pensa ela determinada.

Um brilho malicioso passa pelos seus olhos. Um tanto vacilante pelo efeito do álcool ela pega o celular e compra duas passagens para Paris. Meio trôpega vai até o sofá e chacoalha Raul com mais força que o necessário.

— Raul, acorda. O réveillon vamos passar em Paris! Já comprei as passagens!

Um Raul confuso e sonolento senta-se no sofá.

— O que você está falando, mulher?

— E tem mais — complementa ela — No ano que vem volto a trabalhar e a estudar. Cansei desta família de bosta!

Raul coça a cabeça tentando entender o que sua mulher estava falando. Mal sabia ele que teria muita coisa para digerir dali para a frente.