O relógio do microondas marca seis horas, o aroma inconfundível do café coado invade as narinas de Deméter. Ela olha pela janela da cozinha e sente-se desanimada, o dia está chuvoso e faz um frio atípico para uma manhã de outubro. Ela suspira e pensa que tudo o que mais queria era ficar em casa.
Quase se arrastando, ela vai até o quarto das crianças que ainda dormem e começa a arrumá-las para sair. Mais uma semana que se inicia e com ela, mais cinco dias de tortura. Nenhuma novidade, todas as manhãs eram assim desde o nascimento dos filhos, um sofrimento profundo ao ter que deixá-los numa creche, aos cuidados de terceiros.
Deméter que sempre gostou de trabalhar fora e da sua independência, viu seus valores se transformando após o nascimento de Pedro. Assim que voltou da licença maternidade notou que as coisas não eram mais as mesmas, as prioridades tinham mudado. As tarefas do trabalho não faziam mais sentido e tampouco lhe davam prazer. O instinto maternal que, até então, ela nem sabia que tinha, viera à tona com a força de um tsunami. Agora, o seu maior desejo era ser mãe em tempo integral.
Na ocasião, ela só não pediu as contas porque teve medo. Medo de não se acostumar à rotina da casa, medo de ser rotulada como “do lar”, medo do que seu marido iria pensar. Medo de não mais corresponder à imagem de “mulher moderna” da qual ela e suas amigas tanto se orgulhavam.
O tempo passou, Pedro completou um ano e Deméter tratou de sufocar seus sentimentos. Muita embora todos os dias uma culpa avassaladora a corroesse. Culpa por tudo: por deixar o filho na creche, por não estar com ele quando acordava choroso, culpa por realizar mecanicamente as tarefas do trabalho, por não se dedicar mais ao casamento, por sua casa estar sempre uma bagunça…culpa, culpa, culpa. E assim, dividida ao meio, ela tentava dar conta de tudo o que tinha que fazer. Se sentindo mais e mais esgotada e deprimida.
Em meio a esse turbilhão que tragava suas forças, ela se descobriu grávida de uma menina. Um misto de sentimentos a invadiu, se por um lado seu peito quase explodiu de alegria, seu sonho sempre fora um casal de filhos, por outro, ficou apreensiva. Seu marido, assim como outros milhões de brasileiros, tinha perdido o emprego. Decididamente aquele não era um bom momento para uma gravidez.
Os noves meses até que passaram rápido. Ao contrário de muitas mulheres, Deméter adorava estar grávida. Num domingo ensolarado de março, Beatriz nasceu. Linda, saudável, rechonchuda. A vontade de ser mãe em tempo integral se tornou ainda mais insuportável.
Às vezes Deméter tentava desabafar com a sua mãe, falar de seus tormentos e dificuldades. Mas ela não compreendia suas aflições, sempre que a conversa enveredava por este rumo repetia: “Me matei de trabalhar numa máquina de costura para que você estudasse e não precisasse um dia sequer limpar um fogão e agora, que tem um belo emprego, vem me dizer que quer ficar em casa, limpando bunda de criança. Não entendo você”. Deméter, que nada podia fazer no momento pois, era o seu salário que mantinha casa, engolia em seco e se calava.
Se a gravidez passou rápido, a licença maternidade voou. Naquela manhã chuvosa de segunda-feira, como em todas as outras, ela estacionou seu carro, respirou fundo, assoou o nariz e refez a maquiagem. Respirou fundo novamente e como se arrastasse correntes, atravessou o pátio em direção à recepção. Célia, a recepcionista, meio constrangida, meio penalizada, informou que ela deveria se dirigir ao Recursos Humanos. Surpresa, Deméter só então se deu conta que o hall da recepção estava repleto de colegas. Funcionários de outros departamentos, todos abatidos, falando baixo entre si.
Deméter agradeceu a recepcionista e caminhou com passos firmes e a cabeça erguida rumo ao elevador. Quando a porta de aço se fechou, ela não pode mais segurar o sorriso de satisfação que teimava em se desenhar nos seus lábios.