Um Conto de Natal

Chovia torrencialmente quando Natália deixou a loja de brinquedos onde trabalhava. Já passava das dez horas da noite e ela estava preocupadíssima com suas filhas e sua mãe, esperando por ela em casa.

Protegeu como pode  a sacolinha plástica com os presentinhos para as meninas e para sua mãe, coisa simples, que ela conseguiu comprar fazendo horas extras no período de Natal. Como trabalhava numa loja de brinquedos e naquele dia 24 de dezembro não tivera tempo nem de almoçar, para a mãe, uma senhora de 78 anos, ela comprara um ursinho de pelúcia, pois crescera ouvindo a mãe falar que nunca tinha ganhado nenhum presente de Natal. Ela esperava que a mãe abstraísse sua idade cronológica e ficasse feliz com o singelo presente.

Quando chegou ao ponto de ônibus e se deparou com o mesmo vazio, amaldiçoou aquele cliente insuportável que entrou na loja 10 minutos antes do horário do fechamento e lá ficou, por mais de meia hora para escolher um joguinho para o sobrinho. Por conta daquele desgraçado, com certeza ela não conseguiria chegar em casa antes da meia noite. 

A chuva continuava a cair impiedosamente, o abrigo de ônibus não oferecia a proteção necessária e como já estava encharcada até os ossos, sentou-se no banco molhado, ainda preocupada em proteger os embrulhos que havia feito com tanto amor.

Usando os últimos créditos que ainda tinha no seu pré-pago, ligou para sua filha mais velha, Sofia, para informar que muito provavelmente chegaria atrasada. Preferiu não ligar para a mãe que, com certeza, faria a ela uma série de críticas sobre sua falta de compromisso com a pontualidade, etc, etc…

Sofia, ao contrário, se preocupou com a mãe na rua debaixo daquele aguaceiro e fez mil recomendações de cuidado com a segurança, pois a cidade andava muito violenta. Disse que iria rezar para que o ônibus passasse rapidinho e ela chegasse logo em casa. – Uma pérola aquela filha. –  pensou Natália quando o celular ficou mudo. Das duas filhas, Sofia, com 13 anos era a mais amorosa e a mais preocupada. Eduarda, com 10, tinha um temperamento difícil. Sempre exigente e impaciente, culpava a mãe pela separação do casal. Por ela, Natália continuaria a sofrer as agressões físicas e emocionais do marido, só para que a família mantivesse o padrão de classe média alta que o pai lhes proporcionava.

Fazer o quê? Ambas tinham sido criadas da mesma forma, recebendo os mesmos valores e, no entanto, pensavam e agiam de forma tão oposta. Para Natália estava claro que o seu grande desafio como mãe era a pequena Eduarda, um espirito a ser trabalhado. Por estar perdida em seus pensamentos, ela nem se deu conta que uma senhora muito idosa, com aspecto de mendiga, tinha se sentado ao seu lado.

De fato, ela foi trazida à realidade pelo forte odor de azedo e urina que a mulher exalava. Sua primeira reação foi de asco, imediatamente ela se levantou e foi para um canto da cobertura, quase na chuva. Intimamente se arrependeu de sua atitude, mas a aparência desgrenhada da velha mulher e o fedor, a mantiveram de pé. Observando de soslaio, ela achou que a mulher era meio maluca, dessas mendigas que a gente tanto vê nas ruas das grandes cidade. Porém, quando a mulher ergueu os olhos e a encarou, Natália percebeu que a mulher apesar da sujeira tinha a pele bem cuidada e os cabelos pintados. Seu olhar era vazio, como de alguém que houvesse perdido a alma.

Aquela situação a incomodou demais. E o ônibus que não passava? Em pânico, ela observou a mulher se levantar com dificuldade e caminhar até ela. Pensou em sair correndo, mas teve vergonha. Meio petrificada, permaneceu onde estava e, como se estivesse tudo em câmera lenta, viu a velha, trajando roupas que lhe dava a aparência de uma  bruxa dos contos de fadas, se aproximar dela com o braço estendido.

Por um segundo achou que a velha iria lhe oferecer uma vermelha e suculenta maça e quase riu da cena que criou na sua cabeça. Seu terror aumentou quando a mulher tocou seu rosto e ela pode ver a sujeira de seus dedos e suas unhas encardidas. Afastando a cabeça para trás, Natália olhou bem para a mulher e viu que seus olhos eram grandes e esverdeados e seus dentes bem tratados. Com certeza não era uma mendiga de longo data, era fato que estava suja e maltrapilha, mas ainda não tinha as tristes marcas de uma moradora de rua. Era evidente que estava mentalmente confusa, talvez sofresse do mal de Alzheimer, talvez de alguma outra demência.

Ao perceber que Natália se esquivava de um novo contato físico, a mulher novamente a encarou com seu olhar vazio e, virando as costas, começou a caminhar em direção à chuva que caia pesadamente. A cena cortou o seu coração. O ônibus, felizmente, apontou na rua e Natália fez sinal para que ele parasse. 

Quando colocou o pé no primeiro degrau, ela olhou para o motorista e num impulso pediu que ele aguardasse só  um instante. Correu uns poucos metros, colocou a mão no ombro da senhora e quando ela se virou, a chamou para acompanhá-la, sem saber direito o que estava fazendo. A mulher a seguiu sem hesitar.

Natália não sabia porque estava levando aquela mulher para sua casa, mas sabia que não poderia abandona-la sozinha, no meio da rua, em meio ao temporal. Sabia também que teria problemas para explicar a presença daquela figura repugnante em sua casa. Mas, que raios, era Natal. 

Quando entrou com a velha na sala todas ficaram imóveis. Inclusive a mendiga. Sua mãe logo lhe chamou na cozinha exigindo explicações, Eduarda apertou o nariz com as mãos e saiu correndo. Apenas Sofia teve um gesto acolhedor e perguntou se a mulher queria comer alguma coisa. 

Por mais que ela tentasse explicar as razões que a motivaram a trazer consigo aquela mendiga, sua mãe e sua filha caçula não paravam de recriminá-la. A ceia de Natal, embora simples, estava perdida. Só a mendiga comia vorazmente uma coxa do peru. Passava da meia noite quando sua mãe disse que iria para o quarto. Eduarda, chorando, acompanhou a avó e disse que iria ligar para o pai. Estava claro que ambas a culpavam pelo fracasso daquele Natal. A sacolinha com os presentes comprados a tão duras penas estava caída no canto do sofá.

Desorientada Natália olhou para Sofia e perguntou:

— O que nós vamos fazer, minha filha?

— Mãe, a gente tem dar um banho nela. Trocar a roupa e, eu tive uma ideia. — disse Sofia com os olhos brilhando.

— Qualquer ideia é muito bem-vinda. No que você está pensando? — disse Natália num suspiro.

— Mãe, eu acho que essa senhora está perdida. Depois que a gente arrancar dela essa camada de sujeira, pentear seus cabelos e escovar seus dentes, a gente coloca uma roupa limpa da vó, depois tiramos uma foto e colocamos nas redes sociais. Eu tenho certeza de que deve ter pessoas procurando por ela.

— Boa ideia, Sofia! — disse Natália, orgulhosa da filha.

Não se pode dizer que foi uma tarefa fácil. Quando foram tirar os andrajos da velha para a colocar no chuveiro ela tentou fugir. Mas, Sofia esperta havia trancado as portas e com jeitinho convenceu a mulher a tomar o banho. Depois de várias esfregadas e enxaguadas uma nova pessoa surgiu.  Uma senhora, por volta dos 80 anos, muito bonita, apesar da idade, e bem cuidada.

A foto nas redes sociais foi compartilhada milhares de vezes  por pessoas sensíveis ao drama da senhora. Até que, no início da manhã, alguém entrou em contato. Era a neta da senhora, que se chamava Dalva. Havia semanas que a família estava procurando por ela. Dna. Dalva sofria do mal de Alzheimer, conforme Natália havia suspeitado, e tinha fugido da clínica onde estava internada.

Em poucas horas estavam todos na casa de Natália, a filha , o filho e os dois netos da Dna. Dalva. Todos muito felizes pela Graça alcançada, que ganhou relevância maior por ser justamente no dia do Natal. Guilherme, o filho da Dna. Dalva quis recompensar Natália com uma considerável quantia em dinheiro. Natália recusou. Inconformado, ele propôs comprar para as meninas qualquer presente que elas quisessem. Eduarda se entusiasmou. Natália, recusou.

Em particular ela explicou ao quase ofendido Guilherme que não poderia aceitar nenhuma recompensa material por ter cumprido com sua obrigação de ser humano e de cristã. Que ensinamentos ela poderia transmitir às filhas se aceitasse dinheiro em troca de um gesto de amor?

Natália pediu a Guilherme que, se quisesse mesmo agradecer, poderia colocar a ela e a sua família nas orações do dia e que apenas mandasse boas energias para todas elas. 

Moral da história: o Natal não deve ser apenas presentes, ceia, decoração… O verdadeiro espírito Natalino se baseia no amor, na solidariedade, na paz e na caridade. O resto, é só penduricalho.

Árvore de Natal Estilizada